A Casa Velha Parte II
06/08/2013 17:13
Durante os primeiros dias, depois da chegada de Lalau, nada aconteceu
que mereça a pena contar aqui. Félix acompanhava-me no trabalho,
mas interrompidamente, e às vezes, se saía a algum negócio da casa,
só nos víamos à mesa do jantar. Lalau não ia à biblioteca; um dia,
porém, atreveu-se a entrar às escondidas, e foi ter comigo. Suspendi o
trabalho, e conversamos perto de meia hora, sobre uma infinidade de
coisas, presentes e passadas. Era mais de onze horas; o dia estava
quente, o ar parado, a casa silenciosa, salvo um ou outro mugido, ao
longe, ou algum canto de passarinho. Eu, com os estudos clássicos que
tivera, e a grande tendência idealista, dava a tudo a cor das minhas
reminiscências e da minha índole, acrescendo que a própria realidade
externa — antiquada e solene nos móveis e nos livros — recente e
graciosa em Lalau — era propícia à transfiguração.
Deixei-me ir ao sabor do momento. Notem bem que ela às vezes ouvia
mal, ou não sabia ouvir absolutamente, mas com os olhos vagos,
pensando em outra coisa. Outras vezes interrompia-me para fazer um
reparo inútil. Já disse também que tinha a conversação truncada e
salteada. Com tudo isso, era interessante falar-lhe, e principalmente
ouvi-la. Sabia, no meio das puerilidades freqüentes da palavra, não
destoar nunca da consideração que me devia; e tanto era curiosa
como franca.
— Teve medo? disse ela.
— Como é que a senhora entrou?
— Entrando; vi o senhor aqui, e vim muito devagar, pensando que não
chegasse ao fim da sala, sem que o senhor me ouvisse, mas não ouviu
nada, todo embebido no que está escrevendo. O que é?
— Coisas sérias.
— Nhãtônia disse que o senhor está aqui fazendo umas notas políticas
para pôr num livro.
— Então se sabia como é que me perguntou?
Lalau encolheu os ombros.
— Fez mal, disse eu. Olhe que eu sou padre, posso pregar-lhe um
sermão.
— O senhor prega sermões? por que não vem pregar aqui, na
quaresma? Eu gosto muito de sermões. No ano passado, ouvi dois, na
Igreja da Lapa, muito bonitos. Não me lembra o nome do padre. Eu,
se fosse padre, havia de pregar também. Só não gosto dos latinórios;
não entendo.
Falou assim, a trancos, uns bons cinco minutos; eu deixei-a ir, olhando
só, vivendo daquela vida que jorrava dela, cristalina e fresca. No fim,
Lalau sentou-se, mas não se conservou sentada mais de dois minutos,
levantou-se outra vez para ir à janela, e tornou dentro para mirar os
livros. Achou-os grandes demais; admirava como havia quem tivesse a
paciência de os ler. E depois alguns eram tão velhos!
— Que tem que sejam velhos? retorqui. Deus é velho, e é a melhor
leitura que há.
Lalau olhou espantada para mim. Provavelmente era a primeira vez que
ouvia uma figura daquelas, e fez-lhe impressão. Teimou depois que os
livros velhos pareciam-se com o antigo capelão da casa, o antecessor
do Padre Mascarenhas, que andava sempre com a batina empoeirada,
e tinha a cara feita de rugas. Consegüintemente vieram histórias do
capelão. Em nenhuma delas, nem de outras entrava o Félix; exclusão
que podia ser natural, mas que me não pareceu casual. Como eu lhe
dissesse que não se deve mofar dos padres, ela ficou muito séria e
atenta; depois rompeu, rindo:
— Mas não é do senhor.
— De mim ou de outro, é a mesma coisa.
— Ora, mas o outro era tão feio, tão lambuzão...
Disse-lhe, com as palavras que podia, que o padre é padre, qualquer
que seja a aparência. Enquanto lhe falava, ela dava alguns passos de
um lado para outro, cuido que para sentir o tapete debaixo dos pés;
não o havia senão ali e na sala de visitas, fechada sempre. De quando
em quando parava e olhava de cima as figuras desbotadas no chão;
outras vezes deixava escorregar o pé, de propósito. Tinha o rasgo
pueril de achar prazer em qualquer coisa.
— Está bom, está bom, disse-me ela finalmente, não precisa brigar
comigo; não falo mais do capelão. Pode continuar o seu trabalho, voume
embora.
— Não é preciso ir embora.
— Muito obrigada! Quer que fique olhando para as paredes, enquanto o
senhor trabalha...
— Mas se eu não estou trabalhando! Olhe, se quer que eu não faça
nada, sente-se um pouco, mas sente-se de uma vez.
Lalau sentou-se. A cadeira em que se sentou era uma velha cadeira de
espaldar de couro lavrado, e pés em arco. Dali , olhava para fora, e o
sol, entrando pela janela, vinha morrer-lhe aos pés. Para não estar em
completo sossego, começou a brincar com os dedos; mas cessou logo,
quando lhe perguntei, à queima-roupa, se se lembrava da mãe. As
feições da moça perderam instantaneamente o ar alegre e descuidado;
tudo o que havia nelas frívolo converteu-se em gravidade e
compostura, e a criança desapareceu, para só deixar a mulher com a
sua saudade filial.
Respondeu-me com uma pergunta. Como podia esquecê-la? Sim,
senhor, lembrava-se dela, e muito, e rezava por ela todas as noites
para que Deus lhe desse o céu. E com certeza estava no céu. Era boa
como eu não podia imaginar, e ninguém foi nunca tão amiga dela,
como a defunta. Não negava que Nhãtônia lhe queria muito, e tinha
provas disso, e assim também as mais pessoas de casa; mas a mãe
era outra coisa. A mãe morria por ela, e quase se pode dizer que foi
assim mesmo, porque apanhou uma constipação, estando a tratá-la de
uma febre, e ficou com uma tosse que nunca mais a deixou. O doutor
negou, disse que a morte foi de outra coisa; ela, porém, desconfiou
sempre que a doença da mãe começou dali. Tão boa que nem quis que
ela a visse morrer, para não padecer mais do que padecia. Não pôde
vê-la morrer, viu-a depois de morta, tão bonita! tão serena! parecia
viva!
Aqui levou os dedos aos olhos; eu levantei-me e disse-lhe que
mudássemos de conversa, que a mãe estava no céu, e que a vontade
de Deus era mais que tudo. Lalau escutou-me com os olhos parados —
ela que os trazia como um casal de borboletas —, e depois de alguns
instantes de silêncio, continuou a falar da mãe, mas já não da morte,
senão da vida, e particularmente da beleza. Não, eu não podia
imaginar como a mãe era bonita; até parava gente na rua para vê-la.
E descreveu-a toda, como podia, mostrando bem que as graças físicas
da mãe, aos olhos dela, eram ainda uma qualidade moral, uma feição,
alguma coisa especial e genuína que não possuíram nunca as outras
mães.
— Deus que a chamou para si, disse-lhe eu, lá sabe por que é que o fez.
Agora tratemos dos vivos. Ela está no céu, a senhora está aqui, ao pé
de pessoas que a estimam...
— Oh! eu dava tudo para tê-la ao pé de mim, na nossa casinha da
Cidade Nova! A casa era isto — continuou ela levantando as mãos
abertas, diante do rosto, e marcando assim o tamanho de um palmo —
, ainda me lembro bem, era nada, quase nada — não tinha lá tapetes
nem dourados, mas mamãe era tão boa! tão boa! Coitada de mamãe!
— Olhe o sol! disse eu procurando desviar-lhe a atenção.
Com efeito, o sol, que ia subindo, começava a lamber-lhe a barra do
vestido. Lalau olhou para o chão, quis recuar a cadeira, mas sentindoa
pesada, levantou-se e veio ter comigo; pedindo-me desculpa de
tanta coisa que dissera, e não interessava a ninguém; e não me deu
tempo de replicar, porque acrescentou logo outro pedido: — que não
contasse nada a Nhãtônia.
— Por quê?
— Ela pode acreditar que eu disse isto, por não estar bem aqui, e eu
estou muito bem aqui, muito bem.
Quis retê-la, mas a palavra não alcançou nada, e eu não podia pegar-lhe
nas mãos. Deixei-a ir, e voltei às minha notas. Elas é que não
voltaram a mim, por mais que tentasse buscá-las e transcrevê-las.
Lalau ainda tornou à sala, daí a três ou quatro minutos, para reiterar o
último pedido; prometi-lhe tudo o que quis. Depois, fitando-me bem,
acrescentou que eu era padre, e não podia rir dela nem faltar à minha
palavra.
— Rir? disse eu em tom de censura.
— Não se zangue comigo, acudiu sorrindo; digo isto porque sou muito
medrosa e desconfiada.
E, rápida, como passarinho, deixou-me outra vez só. Desta vez não
tornei às notas; fiquei passeando na longa sala, costeando as estantes,
detendo-me para mirar os livros, mas realmente pensando em Lalau. A
simpatia que me arrastava para ela complicava-se agora de
veneração, diante daquela explosão de sensibilidade, que estava longe
de esperar da parte de uma criatura tão travessa e pueril. Achei nessa
saudade da mãe, tão viva, após longos anos, um documento de
grande valor moral, pois a afeição que ali lhe mostravam, e o próprio
contacto da opulência podiam naturalmente tê-la amortecido ou
substituído. Nada disso; Lalau daria tudo para viver ao pé da mãe!
Tudo? Pensei também no silêncio que me recomendou, medrosa de
que a achassem ingrata, e este rasgo não me pareceu menos valioso
que o outro: era claro que ela compreendia as induções possíveis de
uma dor que persiste, a despeito dos carinhos com que cuidavam tê-la
eliminado, e queria poupar aos seus benfeitores o amargor de crer que
empregavam mal o benefício.
Pouco depois chegou o Félix. Veio falar-me, disse-me que tinha uma boa
notícia, que ia mudar de roupa e voltava. Vinte minutos depois estava
outra vez comigo, e confiava-me o plano de fazer-se eleger deputado.
— Até agora não tinha resolvido nada, mas acho que devo fazê-lo. Sigo
a carreira de papai. Que, lhe parece, Reverendíssimo?
— Parece-me bem. Todas as carreiras são boas, exceto a do pecado.
Também eu algum tempo, andei com fumaças de entrar na Câmara;
mas não tinha recursos nem alianças políticas; desisti do emprego. E
assim foi bom. Sou antes especulativo que ativo; gosto de escrever
política, não de fazer política. Cada qual como Deus o fez. O senhor, se
sair a seu pai, é que há de ser ativo, e bem ativo. A coisa é para
breve?
Não me respondeu nada; tinha os olhos fora dali. Mas logo depois,
advertido pelo silêncio:
— O quê? Ah! não é para já; estou arranjando as coisas. Estive com
alguns amigos de papai, e parece que há furo. Como sabe há muitos
desgostos contra o Regente... Se o Imperador já tivesse a idade de
constituição é que era bom; ia-se embora o Regente e o resto... Pois é
verdade, creio que sim... Entretanto, nunca tinha pensado nisto
seriamente; mas as coisas são assim mesmo... Que acha?
— Acho que fez bem.
— Em todo o caso, peço-lhe segredo; não diga nada a mamãe.
— Crê que ela se oponha?
— Não; mas... pode ser que não se alcance nada, e para lhe não dar
uma esperança que pode falhar... É só isto.
Era plausível a explicação; prometi-lhe não dizer nada. Creio que
falamos ainda de política, e da política daqueles últimos dez anos, que
não era pouca nem plácida. Félix não tinha certamente um plano de
idéias, e apreciações originais; através das palavras dele, apalpava eu
as fórmulas e os juízos do círculo ou das pessoas com quem ele lidava
para o fim de encetar a carreira. Agora, a particularidade dele era ter a
clareza e retidão de espírito precisas para só recolher do que ouvia a
parte sã e justa, ou, pelo menos, a porção moderada. Nunca andaria
nos extremos, qualquer que fosse o seu partido.
— Trabalhou muito hoje? perguntou-me ele quando nos preparávamos
para jantar.
— Pouco; tive uma visita.
— Mamãe?
— Não; outra pessoa, Lalau, não é assim que lhe chamam? Esteve aqui
uma meia hora. Podia estar três ou quatro horas que eu não dava por
isso. Muito engraçada!
— Mamãe gosta muito dela, disse ele.
— Todos devem gostar dela; não é só engraçada, é boa, tem muito bom
coração. Digo-lhe que pus de lado o Imperador, os Andradas, os Sete
de Abril, pus tudo de lado só para ouvi-la falar. Tem coisas de criança,
mas não é criança.
— Muito inteligente, não acha?
— Muito.
— De que falaram?
— De mil coisas, talvez duas mil; com ela é difícil contar os assuntos; vai
de um para outro com tal rapidez que, se a gente não toma cuidado,
cai no caminho. Sabe que idéia tive aqui, olhando para ela?
— Que foi?
— Casá-la.
— Casá-la? perguntou ele vivamente.
— Casá-la eu mesmo; ser eu o padre que a unisse ao escolhido do seu
coração, quando ela o tivesse...
Félix não disse nada, sorriu acanhadamente, e, pela primeira vez,
suspeitei que as intenções do rapaz podiam ser mui outras das que lhe
supunha até então, que haveria nele, porventura em vez de um
marido, um sedutor. Não alcanço exprimir como me doeu esta
suposição. Ia tanto para a moça, que era já como se fosse minha irmã,
o meu próprio sangue, que um estranho ia corromper e prostituir. Quis
continuar a falar, para escrutar-lhe bem a alma; não pude, ele
esquivou-se, e fiquei outra vez só. Nesse dia retirei-me um pouco mais
cedo. D. Antônia achou-me preocupado, eu disse-lhe que tinha dor de
cabeça.
As pessoas de meu temperamento entender-me-ão. Bastou que uma
idéia se me afigurasse possível para que eu a acreditasse certa. Vi a
menina perdida. Não houvera ali uma agregada, seduzida em 1835,
por um saltimbanco, como me dissera D. Antônia? Agora não seria um
saltimbanco, mas o próprio filho da dona da casa. E assim explicou-seme
a teima de D. Antônia em arredar o filho do Rio de Janeiro,
comparada com a afeição que tinha à menina. Refleti na distância
social que os separava; Lalau era admitida na intimidade da família,
mas o rapaz, filho de ministro e aspirante a ministro, e mais que tudo
filho de casa-grande, tendo herdado o sangue do bisavô, tão orgulhoso
nas veias da mãe, reservar-se-ia para algum casamento de outra laia.
Como, porém, ela era bonita, e a natureza tem leis diferentes da
sociedade, e não menos imperiosas, Félix achara um modo de conciliar
umas e outras, amando sem casar.
Tudo isso que fica aí em resumo, foram as minhas reflexões do resto do
dia, e de uma parte da noite. Estava irritado contra o rapaz, temia por
ela, e não atinava com o que cumpria fazer. Pareceu-me até que não
devia fazer nada, ninguém me dava direito de presumir intenções e
intervir nos negócios particulares de uma família que, de mais a mais,
enchia-me de obséquios. Isto era verdade; mas, como eu quero dizer
tudo, direi um segredo de consciência. Entre a verdade daquele
conceito e o impulso do meu próprio coração, introduzi um princípio
religioso, e disse a mim mesmo que era a caridade que me obrigava,
que no Evangelho acharia um motivo anterior e superior a todas as
convenções humanas. Esta dissimulação de mim para mim podia calála
agora, que os acontecimentos lá vão, mas não daria uma parte da
história que estou narrando, nem a explicaria bem.
Lalau não me saía da cabeça: as palavras dela, suas maneiras,
ingenuidade e lágrimas acudiram-me em tropel à memória, e davamme
força para tenta dominar a situação e desviar o curso dos
acontecimentos. No dia seguinte de manhã quis rir de mim mesmo e
dos meus planos de D. Quixote, remédio heróico, porque é tal a risada
do apupo que ninguém a tolera ainda em si mesmo; mas não consegui
nada. A consciência ficou séria, e a contração do riso desmanchou-se
diante da sua impassibilidade. Compus cinco ou seis planos diferentes,
alguns absurdos. O melhor deles era avisar a tia da menina; mas
rejeitei-o logo por achá-lo odioso. Em verdade, ia dissolver laços
íntimos, a título de uma suspeita, que apenas podia explicar a mim
mesmo. E, se era odioso, não era menos imprudente; podia supor-se
que eu cedia a um sentimento pessoal e reprovado. Rejeitei da vista
esta segunda razão, mas atirei-me à primeira, e dei de mão ao plano.
O melhor de tudo, refleti finalmente, é observar e fazer o que puder,
segundo as circunstâncias, mas de modo que evite estralada.
Tinha de ir almoçar com um padre italiano, no Hospício de Jerusalém, o
mesmo que me falara da obra florentina, e me dera ocasião de brilhar
na Casa Velha. Fui almoçar; no fim do almoço, apareceu lá um recémchegado,
um missionário que vinha das partes da China e do Japão, e
trazia muitas relíquias preciosas. Convidaram-me a vê-las. O
missionário era lento na ação e derramado nas palavras, de modo que
despendemos naquilo um tempo infinito, e saí de lá tão tarde que não
pude ir nesse dia à Casa Velha. De noite, constipei-me, apanhei uma
febre, e fiquei cinco dias de cama.
CAPÍTULO IV
Estava prestes a deixar a cama, quando o Félix me apareceu em casa,
pedindo desculpa de não ter vindo mais cedo, porque só na véspera
soubera da minha doença. Trouxe-me visitas da mãe e de Lalau.
— Isto não é nada, disse-lhe eu; e se quer que lhe confesse, até foi bom
adoecer para descansar um pouco.
— Virgem Maria! Não diga isso.
— Digo, digo. E não só para descansar, mas até para refletir. Doente,
que não lê nem conversa, nem faz nada, pensa. Eu vivo só, com o
preto que o senhor viu. Vem aqui um ou outro amigo, raro; passo as
horas solitárias, olhando para as paredes, e a cabeça...
— A culpa é sua, interrompeu-me ele; podia ter ido para a nossa casa,
logo que se sentiu incomodado. É o que devia ter feito. Não imagina
mamãe como ficou cuidadosa, quando soube que o senhor estava de
cama. Queria que eu viesse ontem mesmo, de noite, visitá-lo; eu é
que disse que podia estar acomodado, e a visita seria antes uma
importunação. E a sua amiguinha?
— Lalau?
— Ficou branca como uma cera, quando ouviu a notícia; e pediu-me
muito que lhe trouxesse lembranças dela, que lhe desse conselho de
não fazer imprudências, de não apanhar chuva, nem ar, nem nada,
para não recair, que as recaídas são piores... Veja lá; se, em vez de se
meter na cama, aqui em casa, tivesse ido para a nossa Casa Velha, lá
teria duas enfermeiras de truz, e um leitor, como eu, para lhe ler tudo
o que quisesse.
— Obrigado, obrigado; agradeço a todos, tanto a elas como ao senhor.
Ficará para a outra moléstia. E, na verdade, é possível que então não
pensasse em nada...
— Justo.
— ...Nem em ninguém. Ah ! então Lalau disse isso? Foi exatamente nela
que estive pensando.
— Como assim?
Ouvi passos e vozes na sala; era o meu preto que trazia um padre a
visitar-me. Noutra ocasião, é possível que o Félix se despedisse e
cedesse o lugar ao padre; mas a curiosidade valeu aqui ainda mais do
que a afeição, e ele ficou. O padre esteve poucos minutos, dez ou
vinte, não me lembra, dando-me algumas notícias eclesiásticas,
contando anedotas de sacristia, que o Félix escutou com grande
interesse, talvez aparente, para justificar a demora. Afinal, saiu, e
ficamos outra vez sós. Não lhe falei logo de Lalau; foi ele mesmo que,
depois de alguns farrapos de conversação, ditos soltos, reparos sem
valor, me perguntou o que é que pensara dela. Eu, que os espreitava
de longe, acudi à pergunta.
— Estive pensando que essa moça é superior à sua condição, disse eu. A
senhora D. Antônia falou-me de outra agregada que, há quatro anos,
foi ali seduzida por um saltimbanco. Não creio que esta faça a mesma
coisa, parque, apesar da idade e do ar pueril, acho-lhe muito juízo;
creio antes que escolherá marido, e viverá honestamente. Mas é aqui o
ponto. O marido que ela escolher pode bem ser da mesma condição
que ela, mas muito inferior moralmente, e será um mau casamento.
Félix dividia os olhos entre mim e a ponta do sapato. Quando acabei,
achou-me razão.
— Não lhe parece? perguntei.
— Decerto.
— Bem sei que é esquisito meter-me assim em coisas alheias...
— Nada é alheio para um bom padre como o senhor, disse ele com
gravidade.
— Obrigado. Confesso-lhe, porém, que essa moça excitou a minha
piedade. Já lhe disse: tem coisas de criança, mas não é criança.
Entregá-la a um homem vulgar, que não a entenda, é fazê-la padecer.
Não sei se a senhora D. Antônia fez bem em apurar tanto a educação
que lhe deu, e os hábitos em que a fez educar; não porque ela não se
acomode a tudo, como um bom coração que é, mas porque, apesar
disso, há de custar-lhe muito baixar a outra vida. Olhe que não é
censurar...
— Pelo amor de Deus! sei o que é. Pensa que eu não estou com a sua
opinião? Estou e muito. Mamãe é que pode ser que não esteja
conosco. Já tem pensado em várias pessoas, segundo me consta, e de
uma delas chegou a falar-me; era o Vitorino, filho do segeiro que nos
conserta as carruagens. Ora veja!
— Não conheço o Vitorino.
— Mas pode imaginá-lo.
Olhei para ele um instante. Pareceu-me que estava de boa-fé; mas era
possível que não, e cumpria arrancar-lhe a verdade. Inclinei-me, e
disse que já tinha um noivo em vista, muito superior ao Vitorino.
— Quem? perguntou ele inquieto.
— O senhor.
Félix teve um sobressalto, e ficou muito vermelho.
— Desculpe-me se lhe digo isto, mas é a minha opinião, e não vale mais
que opinião. Há grande diferença social entre um e outro, mas a
natureza, assim como a sociedade a corrige, também às vezes corrige
a sociedade. Compensações que Deus dá. Acho-os dignos um do
outro; os sentimentos dela e os seus são da mesma espécie. Ela é
inteligente, e o que lhe poderia faltar em educação já sua mãe lho deu.
Teria alguma dúvida em casar com ela?
Félix estendeu-me a mão.
— Não lhe nego nada, o senhor já adivinhou tudo, disse ele. E
continuou, depois de haver-me apertado a mão: Que dúvida poderia
ter? Ela merece um bom marido, e eu acho que não seria de todo
mau. Resta ainda um ponto.
— Que ponto?
Hesitou um instante, bateu com a mão nos joelhos duas ou três vezes,
olhando para mim, como querendo adivinhar as minhas intenções.
— Resta mamãe, disse finalmente.
— Opõe-se?
— Creio que sim.
— Mas não é certo.
— Há de ser certo. Digo-lhe tudo, como se falasse a um amigo velho de
nossa casa. Mamãe percebeu, como o senhor, que nós gostamos um
do outro, e opõe-se. Não o disse ainda francamente, mas sinto que,
em caso nenhum, consentirá no nosso casamento. Esse Vitorino é um
candidato inventado para separá-la de mim; e assim outros em que sei
que já pensou. Estou que Lalau resistirá, mas temo que não seja por
muito tempo... Não se lembra que mamãe já lhe pediu uma vez para
levar-me à Europa? Era com o mesmo fim de afastar-me, distrair-me,
e casá-la.
— Acha isso?
— Com certeza.
— Como explica então que ela continue a ter tanto amor à pequena?
— O senhor não conhece mamãe. É um coração de pomba, e gosta dela
como se fosse sua filha. Mas coração é uma coisa, e cabeça é outra.
Mamãe é muito orgulhosa em coisas de família. Seria capaz de velar
uma semana ou duas, à cabeceira de Lalau, se a visse doente; mas
não consentiria em casá-la comigo. São coisas diferentes.
— Devia ser isso mesmo, repliquei alguns instantes depois. E murmurei
baixinho as palavras que ela ouvira ao avô, no tempo do rei e repetira
mais tarde no paço: "Uma Quintanilha não treme nunca!"
— Nem treme, nem desce, concluiu o rapaz sorrindo. É o sentimento de
mamãe.
— Seja como for, nada está perdido; cuido que arranjaremos tudo.
Deixe o negócio por minha conta.
Tinha o plano feito. Se houvesse reconhecido que as intenções dele
eram impuras, ajudaria a mãe e trataria de casar a menina com outro.
Sabendo que não, ia ter com a mãe para arrancar-lhe o consentimento
em favor do filho. Três dias depois, voltando à Casa Velha, achei nos
olhos de Lalau alguma coisa mais particular que a alegria da amiga,
achei a comoção da namorada. Era natural que ele lhe tivesse contado
a minha promessa. Não lho perguntei; mas disse-lhe rindo que parecia
ter visto passarinho verde. Toda a alma subiu-lhe ao rosto, e a moça
respondeu com ingenuidade, apertando-me a mão:
— Vi.
Não explico a sensação que tive; lembra-me que foi de incômodo. Essa
palavra súbita, cordial e franca, encerrando todas as energias do amor,
lacerou-me as orelhas como uma sílaba aguda que era. Que outra
esperava, e que outra queria, senão essa? Não a pedira, não vinha
interceder por um e por outro? Criatura espiritual e neutra, cabia-me
tão-somente alegrar-me com a declaração da moça, aprová-la, e
santificá-la ante Deus e os homens. Que incômodo era então esse?
que sentimento espúrio vinha mesclar-se à minha caridade? Que
contradição? que mistério? Todas essas interrogações surgiram do
fundo de minha consciência, não assim formuladas, com a sintaxe da
reflexão remota e fria, mas sem liame algum, vagas, tortas e
obscuras.
Já se terá entendido a realidade. Também eu amava a menina. Como
era padre, e nada me fazia pensar em semelhante coisa, o amor
insinuou-se-me no coração à maneira das cobras, e só lhe senti a
presença pela dentada de ciúme.
A confissão dele não me fez mal; a dela é que me doeu e me descobriu a
mim mesmo. Deste modo, a causa íntima da proteção que eu dava à
pobre moça era, sem o saber, um sentimento especial. Onde eles viam
um simples protetor gratuito existia um homem que, impedido de a
amar na terra, procurava ao menos fazê-la feliz com outro. A
consciência vaga de um tal estado deu-me ainda mais força para
tentar tudo.
CAPÍTULO V
Falei a D. Antônia no dia seguinte. Estava disposto a pedir-lhe uma
conversação particular; mas foi ela mesma que veio ter comigo,
dizendo que durante a minha moléstia tinha acabado umas alfaias, e
queria ouvir a minha opinião; estavam na sacristia. Enquanto
atravessávamos a sala e um dos corredores que ficavam ao lado do
pátio central, ia-lhe eu falando, sem que ela me prestasse grande
atenção. Subimos os três degraus que davam para uma vasta sala
calçada de pedra, e abobadada. Ao fundo havia uma grande porta, que
levava ao terreiro e à chácara; à direita ficava a da sacristia, à
esquerda outra, destinada a um ou mais aposentos, não sei bem.
Naquela sala achamos Lalau e o sineiro, este sentado, ela de pé.
O sineiro era um preto velho e doido. Não fazia mais que tocar o sino da
capela, para a missa, aos domingos. O resto do tempo vivia calado ou
resmungando. Ninguém lhe falava, embora fosse manso. Lalau era a
única, entre todos, parentes, agregados ou fâmulos, que ia conversar
com ele, interrogá-lo, escutá-lo, pedir-lhe histórias. E ele contava-lhe
histórias — muito compridas, sem sentido algumas, outras quase sem
nexo, reminiscências vagas e embrulhadas, ou sugestões do delírio.
Era curioso vê-los. Lalau perdia a inquietação; ficava séria e tranqüila,
durante dez, quinze, vinte minutos, a escutá-lo. O Gira (nunca lhe
conheci outro nome) alegrava-se ao vê-la. Com a razão, perdera a
convivência dos mais. Vivia entregue aos pensamentos solitários,
mergulhado na inconsciência e na solidão. A moça representava aos
olhos dele alguma coisa mais do que uma simples criatura, era a
sociedade humana, e uma sombra de sombra da consciência antiga.
Ela, que o sentia, dava-lhe essa curta emersão do abismo, e uma ou
duas vezes por semana ia conversar com ele.
D. Antônia parou. Não contava com a moça ali, ao pé da porta da
sacristia, e queria falar-me em particular, como se vai ver.
Compreendi-o logo pelo desagrado do gesto, como já suspeitara
alguma coisa ao vê-la preocupada. No momento em que chegávamos,
Lalau perguntava ao Gira:
— E depois, e depois?
— Depois, o rei pegou gavião, e gavião cantou.
— Gavião canta?
— Gavião? Uê, gente! Gavião cantou: Calunga, mussanga,
monandenguê... Calunga, mussanga, monandenguê... Calunga...
E o preto dava ao corpo umas sacudidelas para acompanhar a toada
africana. Olhei para Lalau. Ela, que ria de tudo, não se ria daquilo,
parecia ter no rosto uma expressão de grande piedade. Voltei-me para
D. Antônia; esta, depois de hesitar um pouco, deliberou entrar na
sacristia, cuja porta estava aberta. Lalau tinha-nos visto, sorriu para
nós e continuou a falar com o Gira. D. Antônia e eu entramos.
Sobre a cômoda da sacristia estavam as tais alfaias. D. Antônia disse ao
preto sacristão, que fosse ajudar a descarregar o carro que chegara da
roça, e lá a esperasse. Ficamos sós; mostrou-me duas alvas e duas
sobrepelizes; depois, sem transição, disse-me que precisava de mim
para um grande obséquio. Soube na véspera que o filho andava com
idéias de ser deputado; pedia-me duas coisas, a primeira é que o
dissuadisse.
— Mas por quê? disse-lhe eu. A política foi a carreira do pai, é a carreira
principal no Brasil...
— Vá que seja; mas, Reverendíssimo, ele não tem jeito para a política.
— Quem lhe disse que não? Pode ser que tenha. No trabalho é que se
conhece o trabalhador; em todo caso, — deixe-me falar com franqueza
— acho bom da sua parte que procure empregar a atividade em
alguma coisa exterior.
D. Antônia sentou-se, e apontou-me para outra cadeira. Ficamos ambos
ao pé de uma larga janela, que dava para o terreiro. Sentada, declarou
que concordava comigo na necessidade que apontara, mas ia então ao
segundo obséquio, que não era novo; é que o levasse para a Europa.
Depois da Europa, com mais alguns anos e experiência das coisas,
pode ser que viesse a ser útil ao seu país...
Interrompi-a nesse ponto. Ela esperou; eu, depois de fitá-la por alguns
instantes, disse-lhe que a viagem, com efeito, podia ser útil, mas que
os costumes do moço eram tão caseiros que dificilmente se ajustariam
às peregrinações; salvo se adotássemos um meio-termo: enviá-lo
casado.
— Não se arranja uma noiva com um simples baú de viagem, disse ela.
— Está arranjada.
D. Antônia estremeceu.
— Está aqui perto; é a sua boa amiga e pupila.
— Quem? Lalau? Está caçoando. Lalau e meu filho? Vossa
Reverendíssima está brincando comigo. Não vê que não é possível?
Casá-los assim como um remédio? Falemos de outra coisa.
— Não, minha senhora, falemos disto mesmo.
D. Antônia, que dirigira os olhos para outro lado, quando proferiu as
últimas palavras, levantou a cabeça de súbito, ao ouvir o que lhe
disse. Creio que, depois da morte do marido, era a primeira pessoa
que lhe fazia frente. Olhou-me espantada. Estava tão acostumada a
governar ali, naquele mundo insulado, sem contraste nem advertência,
que não podia crer em seus ouvidos. O Padre Mascarenhas dissera-lhe
uma vez, ao almoço, que ela era a imperatriz da Casa Velha, e D.
Antônia sorriu lisonjeada, com a idéia de ser imperatriz em algum
ponto da terra. Não batia com o cetro em ninguém, mas estimava
saber que lho reconheciam.
Pela minha parte, curvei-me respeitoso, mas insisti que falássemos
daquele mesmo assunto, para resolvê-lo de uma vez.
— Resolver o quê? perguntou ela alçando desdenhosamente o lábio
superior.
— Não percamos tempo em dizer coisas sabidas de nós ambos,
continuei. Eles gostam um do outro. Esta é a verdade pura. Resta
saber se poderão casar, e é aqui que não acho nem presumo nenhuma
razão que se oponha. Não falo de seu filho, que é um moço digno a
todos os respeitos. Falemos dela. Diga-me o que é que lhe acha?
Não quis responder; eu continuei o que dizia, lembrei a educação que
ela lhe dera, o amor que lhe tinha, e principalmente falei das virtudes
da moça, da delicadeza dos seus sentimentos, e da distinção natural,
que supria o nascimento. Perguntei-lhe se, em verdade, acreditava
que o Vitorino, filho do segeiro... D. Antônia estremeceu.
— Vejo que está informado de tudo, disse ela depois de um breve
instante de silêncio. Conspiram contra mim. Bem; que quer de mim
Vossa Reverendíssima? Que meu filho case com Lalau? Não pode ser.
— E por que não pode ser?
— Realmente, não sei que idéias entraram por aqui depois de 31. São
ainda lembranças do padre Feijó. Parece mesmo achaque de padres.
Quer ouvir por que razão não podem casar? porque não podem. Não
lhe nego nada a respeito dela; é muito boa menina, dei-lhe a educação
que pude, não sei se mais do que convinha, mas, enfim, está criada e
pronta para fazer a felicidade de algum homem. Que mais há de ser?
Nós não vivemos no mundo da lua, Reverendíssimo. Meu filho é meu
filho, e, além desta razão, que é forte, precisa de alguma aliança de
família. Isto não é novela de príncipes que acabam casando com
roceiras, ou de princesas encantadas. Faça-me o favor de dizer com
que cara daria eu semelhante notícia aos nossos parentes de Minas e
de S. Paulo?
— Pode ser que a senhora tenha razão; é achaque de padre, é achaque
até de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nasceu nas palhas...
— Sim, senhor; mas nesse caso que mal há em casar com o Vitorino?
Filho de segeiro não é gente? Diga-me! Para que ela case com meu
filho, Nosso Senhor nasceu nas palhas; mas para que case com o
Vitorino, já não é a mesma coisa... Diga-me!
— Mas, Senhora D. Antônia...
— Qual! disse ela levantando-se, e indo até à porta que dava para a
capela, e depois à outra de entrada da sacristia; espiou se nos
ouviram, e voltou.
Voltando, deu alguns passos sem dizer nada, indo e vindo, desde a porta
até à parede do fundo, onde pendia uma imagem de Nossa Senhora,
com uma coroa de ouro na cabeça, e estrelas de ouro no manto. D.
Antônia fitou durante alguns momentos a imagem como para
defender-se a si mesma. A Virgem coroada, rainha e triunfante, era
para ela a legítima deidade católica, não a Virgem foragida e caída nas
palhas de um estábulo. Estava como até então não a tinha visto.
Geralmente, era plácida, e alguma vez impassível; agora, porém,
mostrava-se ríspida e inquieta, como se a natureza rompesse as
malhas do costume. A pupila abrasava-se de uma flama nova; os
movimentos eram súbitos e não sei se desconcertados entre si. Eu, da
minha cadeira, ia-a acompanhando com os olhos, a princípio
arrependido de ter falado, mas vencendo logo depois esse sentimento
de desânimo, e disposto a ir ao fim. Ao cabo de poucos minutos, D.
Antônia parou diante de mim. Quis levantar-me; ela pôs-me a mão no
ombro, para que ficasse, e abanou a cabeça com um ar de censura
amiga.
— Para que me falou nisso? pergunta logo depois com doçura. Conheço
que fala por ser amigo de um e de outro, e da nossa casa...
— Pode crer, pode crer.
— Creio, sim. Então eu não vejo as coisas? Tenho notado que é amigo
nosso. Ela principalmente, parece tê-lo enfeitiçado... Não precisa ficar
vermelho; as moças também enfeitiçam os padres, quando querem
que eles as casem com os escolhidos do coração delas. Que ela
merece, é verdade; mas daí a casar é muito. Venha cá, prosseguiu ela
sentando-se, vamos fazer um acordo. Eu cedo alguma coisa, o senhor
cede também, e acharemos um modo de combinar tudo. Confesso-lhe
um pecado. A escolha do Vitorino era filha de um mau sentimento; era
um modo, não só de os separar, mas até de a castigar um pouco.
Perdoe-me, Reverendíssimo; cedi ao meu orgulho ofendido. Mas
deixemos o Vitorino; convenho que não é digno dela. É bom rapaz,
mas não está no mesmo grau de educação que dei a Lalau. Vamos a
outro; podemos arranjar-lhe empregado do foro, ou mesmo pessoa de
negócio... Em todo caso, não seja contra mim; ajude-me antes a
arranjar esta dificuldade que surgiu aqui em casa...
— Desde quando?
— Sei lá! desde meses. Desconfiei que se namoravam, e tenho feito o
que posso, mas vejo que não posso muito.
— Entretanto, continua a recebê-la.
— Sim, para vigiá-la. Antes a quero aqui que fora daqui.
— Não é então porque a estima?
— É também porque a estimo. Infelizmente, porque a estimo. Quem lhe
disse que não gosto dela, e muito? Mas meu filho é outra coisa; entrar
na família é que não.
D. Antônia tirou o lenço do bolso, para esfregar as mãos, tornou a
guardá-lo, e reclinou-se na cadeira, enquanto eu lhe fui respondendo.
Conquanto fosse muito mais baixa que eu, dera um jeito tão superior
na cabeça que parecia olhar de cima.
Fui respondendo o que podia e cabia, com boas palavras, mostrando em
primeiro lugar a inconveniência de os deixar namorados e separados:
era fazê-los pecar ou padecer. Disse-lhe que o filho era tenaz, que a
moça provavelmente não teimaria em desposá-lo, sabendo que era
desagradável à sua benfeitora, mas também podia dar-se que o
desdém a irritasse, e que a certeza de dominar o coração de Félix lhe
sugerisse a idéia de o roubar à mãe. Acrescia a educação, ponto em
que insisti, a educação e a vida que levava, e que lhe tornariam
doloroso passar às mãos de criatura inferior. Finalmente — e aqui sorri
para lhe pedir perdão —, finalmente, era mulher, e a vaidade,
insuportável nos homens, era na mulher um pecado tanto pior quanto
lhe ficava bem; Lalau não seria uma exceção do sexo. Herdar com o
marido o prestígio de que gozava a Casa Velha acabaria por lhe dar
força e fazê-la lutar. Aqui parei; D. Antônia não me respondeu nada,
olhava para o chão.
Como estávamos de costas para a janela, e ficássemos calados algum
tempo, fomos acordados do silêncio pela voz de Lalau que vinha do
lado do terreiro. Voltamos a cabeça; vimos a moça repreendendo a
dois moleques, crias da casa, que puxavam pela casaca ao sineiro,
uma velha casaca que o Félix lhe dera alguns dias antes. O sineiro,
resmungando sempre, atravessou o terreiro, tomou à direita para o
lado da frente da capela, e desapareceu; Lalau pegou na gola da
camisa de uma das crias e na orelha da outra, e impediu que elas
fossem atrás do pobre-diabo.
Olhei para D. Antônia, a fim de ver que impressão lhe dera o ato da
moça. Mal começava a fitá-la, reparei que franzia a testa, não sei até
se empalidecia; tornando a olhar para fora, tive explicação do abalo. Vi
o filho de D. Antônia ao pé da moça; acabava de chegar ao grupo.
Lalau explicava-lhe naturalmente a ocorrência; Félix escutava calado,
sorrindo, gostando de vê-la assim compassiva, e afinal, quando ela
acabou, inclinou-se para dizer alguma coisa aos moleques. Vimo-lo
depois pegar em um destes, e aproximá-lo de si, enquanto a moça
ficou com o segundo; e, posto esse pretexto entre eles, começaram a
falar baixinho.
D. Antônia recuou depressa, para que não a vissem. Creio que era a
primeira vez que eles lhe apresentavam semelhante quadro. Recuou
levantando-se, e foi para o lado da cômoda; eu continuei a observálos.
Não se podia ouvir-lhes nada, mas era claro que falavam de si
mesmos. Às vezes a boca interrompia os salmos, que ia dizendo, para
deixar a antífona aos olhos; logo depois recitava o cântico. Era a
eterna aleluia dos namorados.
Violentei-me, não tirei a vista do grupo; precisava matar em mim
mesmo, pela contemplação objetiva da desesperança, qualquer má
sugestão da carne. Olhei para os dois, adivinhei o que estariam
dizendo, e, pior ainda, o que estariam calando, e que se lhes podia ler
no rosto e nas maneiras. Lalau era agora mulher apenas, sem
nenhuma das coisas de criança que a caracterizavam na vida de todas
as horas. Com as mãos no ombro do moleque, ora fitava os olhos na
carapinha deste, ouvindo somente as palavras de Félix; ora, erguia-os
para o moço, a fim de o mirar calada ou falando. Ele é que olhava
sempre para ela atento e fixo.
Entretanto, D. Antônia aproximara-se outra vez da janela, por trás de
mim, e de mais longe, confiada na obscuridade da sacristia. Voltei-me
e disse-lhe que a nossa espionagem era de direito divino, que o
próprio céu nos aparelhara aquela indiscrição. D. Antônia, em geral
avessa às sutilezas do pensamento, menos que nunca podia agora
penetrá-las; pode ser até que nem me ouvisse. Continuou a olhar para
os dois, ansiosa de os perceber, aterrada de os adivinhar.
— Uma coisa há de conceder, disse-lhe eu, há de conceder que eles
parecem ter nascido um para o outro. Olhe como se falam. Veja os
modos dela, a dignidade, e ao mesmo tempo a doçura; ele parece até
que quer fazer esquecer que é o herdeiro da casa. Não sei até se lhe
diga uma coisa; digo se me consentir...
D. Antônia voltou os olhos a mim com um ar interrogativo e
complacente.
— Digo-lhe que, se alguém trocasse os papéis, e a desse como sua filha,
e a ele como o advogado da casa, ninguém poria nenhuma objeção.
D. Antônia afastou-se da janela, sem dizer nada; depois tornou a ela,
curiosa, interrogando a fisionomia dos dois. No fim de alguns minutos,
não tendo esquecido as minhas últimas palavras, redargüiu com ironia
e tristeza:
— Advogado? Creio que é muito; diga logo cocheiro.
Fiz um gesto de pesar. E pedi-lhe que me desculpasse o estilo pinturesco
da conversação; não queria dizer senão que a dignidade da moça fála-
ia supor dona da casa, ao passo que as maneiras respeitosas dele,
que tão bem lhe iam, poderiam fazê-lo crer outra coisa; mas outra
coisa educada, notasse bem. D. Antônia ouvia-me distraída e inquieta,
olhando para fora e para dentro; e quando afinal os dois separaramse,
indo ele para o lado da frente da capela, que comunicava com o
caminho público, e ela para a parte oposta, a fim de entrar em casa,
D. Antônia sentou-se na cadeira em que estivera antes, e respirou à
larga. Abanou a cabeça duas ou três vezes, e disse-me sem olhar para
mim:
— Não tenho de que me queixar; a culpa é toda minha.
De repente, voltou a cabeça para o meu lado e fitou-me. Tinha as
feições um tanto alteradas, como que iluminadas, e esperei que me
dissesse alguma coisa, mas não disse. Olhou, olhou, recompôs a
fisionomia e levantou-se.
— Vamos.
Não obedeci logo; imaginei que ela acabava de achar algum
estratagema para cumprir a sua vontade, e confessei-lho sem rebuço,
porque a situação não comportava já dissimular. D. Antônia respondeu
que não, não achara nem buscara nada, e convidou-me a sair. Insisti
no receio, acrescentando que, se cogitava dar um golpe, melhor seria
avisar-me, para que os dissuadisse, e não fossem eles apanhados de
supetão. D. Antônia ouviu sem interromper, e não replicou logo, mas
daí a alguns segundos, com palavras não claras e seguidas, senão
ínvias e dúbias. Contava comigo ao lado dela, desde que soubesse a
verdade... mas que a apoiasse já... depois... então...
— A verdade? repeti eu. Que verdade?
— Vamos embora.
— Diga-me tudo, a ocasião é única, estamos perto de Deus...
D. Antônia estremeceu ouvindo esta palavra, e deu-se pressa em sair da
sacristia; levantei-me e saí também. Achei-a a dois passos da porta,
disse-me que ia ver os aposentos fronteiros, porque contava com
hóspedes da roça, e foi andando; eu desci os degraus de pedra,
atravessei o pátio da cisterna, e recolhi-me à biblioteca. Recolhi-me
alvoroçado. Que verdade seria aquela, anunciada a fugir, tal verdade
que me faria trocar de papel, desde que eu a conhecesse? Cumpria
arrancar-lha, e a melhor ocasião ia perdida.