Capítulo 4

O passado recaiu sobre ela novamente enquanto estava dormindo. Ao menos, aquela era uma das poucas lembranças que guardava da mãe, quando ainda era uma pequena criança de dez anos, um pouco mais que Elisa; aquela época, Sophia não parecia tão frustrada quanto nos anos que se seguiram da descoberta do câncer de Aleksander até a morte deste. Estavam os três sentados à frente da grande casa de campo que mantinham na parte oriental da Rússia quando Demitri veio correndo à direção deles, com sua animação fora do comum.
— Valia, vamos andar de bicicleta?
— Eu não quero. Não gosto.
— Isso é porque você é uma tremenda chata.
— Pede para o Viktor fazê-lo.
— Ele não quer.
— Talvez seja a companhia desagradável que você é! Nem o mordomo quer lhe fazer companhia…
— Chata!
— Pare vocês dois, agora! — como sempre, Sophia deu a intimação, chamando a atenção de ambos. — Gostaria que vocês curtissem um pouco mais as férias que vocês têm. Logo, as aulas continuaram e ai eu quero ver vocês terem tempo para andar de bicicleta.
— Mamãe, eu não gosto! — Valia protestou novamente.
— Deixe sua irmã em paz, Demitri — Aleksander interpôs, revirando os olhos cheios de humor. — Não vê que ela quer ler o livro dela em paz? Quer saber, eu vou com você… romances são para mulherzinhas.
— Não são não. Quantas vezes você chorou lendo… — Sophia começou também cheia de humor.
— Shhhh.
Naquela época, havia amor entre aquele casal. Eles, a pouco, haviam completado quinze anos de casados e eles se compreendiam bem. Por isso, Aleksander, o alto homem ruivo, rosto sardento e olhos verdes-esmeralda depositou um beijo nos lábios de sua mediana esposa, que tanto prezava. Não havia porque receber uma represália dos filhos, quando eles conviviam com aquela troca de carinhos modestos diariamente. Claro, Demitri não parecia digerir àquilo muito bem, não da forma mais apropriada, no caso, e fazia careta de nojo todas as vezes que via os pais se beijarem; já Valia achava que aquilo era tão perfeito quanto às histórias de contos-de-fadas e, por isso, tinha o sonho de encontrar seu príncipe, tal como a mãe havia encontrado o pai, e eles eram perfeitos uns aos outros.
Sophia ainda tinha um sorriso perfeito nos lábios quando, enfim, Aleksander estava longe junto ao filho e virou-se para a filha. Tentou ser amigável:
— Valia, da próxima vez faça o que seu irmão pede, sim? Ele só quer te defender e te ajudar.
— Não, mamãe. Todas às vezes, ele tenta me machucar, me jogando no chão. Eu não quero isso: ele é mal.
— Considere isso, tudo bem? Vocês são irmãos e gêmeos, ainda por cima, então devem se entender. Faça isso por seus pais, tudo bem?
A menina balançou a cabeça positivamente, mesmo em contragosto. Queria agradar a mãe e fazê-la se sentirem mais próximas. No entanto, desde sempre soube que a preferência de sua matriarca sempre havia sido Demitri e não parecia estar interessada em ouvir a versão da menina sobre os fatos: isso a fazia se sentir deslocada. Sempre soube que o amor do pai era muito bem distribuído entre os filhos, mas a mesma coisa não se aplicava aquela mulher de olhos tão claros quanto uvas-verdes e cabelos lisos e louros.
O sono estava pesado e, por isso, as memórias lhes vinham picotadas: algumas ela lembrava com exatidão, as cores muito vivas, e parecia que ela era apenas uma terceira pessoa, ao longe, observando tudo o que ali se passava; já outras, de tão dilaceradas, pareciam filmes que, após anos guardados em uma sala úmida, veio a apodrecer, apenas deixando algumas partes intactas.
As imagens marcantes entravam no primeiro caso, fossem elas boas ou más, se bem o segundo caso estivesse pregado em sua memória; tal como aquela em que passara sufocos inimagináveis á mente de uma pessoa comum, e que a fazia desejar cada vez mais a vingança sobre aqueles que lhe fizeram mal. A memória da mãe, por exemplo, sobre a última vez que a vira, só a fazia querer pegar a sua calibre 9mm e meter um tiro na testa dela:
Chovia sobre São Petersburgo como jamais parecera chover em toda a estadia de Valia na cidade e aquilo se perdura por anos. Era maior, legalmente falando, de idade e podia dirigir por ai, bem como também poderia começar a frequentar bares e encher a cara sem ter que responsabilizar terceiros sobre esse ato, mas, no entanto, não o faria: havia uma pessoinha dentro de si, com seus cinco meses que já chutava e empurrava. Uma menininha que, ainda dentro de seu ventre, parecia despertar alegria quando a mãe cantava ou conversava consigo e se chamaria Elisa Marie, um nome de muito mais fácil decoração que o seu esquisito Valia Dasha.
A garota sentia falta de um ombro amigo. Desde a morte do pai, não tinha coragem de abrir a boca para falar nada com ninguém: ele era o único que conhecia a verdade sob aquele teto e protegia a filha das maldades do irmão enquanto podia – até virara-o as costas –, mas já não podia contar com o carinho e compaixão deste há pelo menos dois meses.
A porta do quarto foi escancarada, assustando-a. Sophia, que havia feito de sua vida, nos últimos tempos, um verdadeiro inferno, estava parada na soleira da porta, segurando algo que, provavelmente, utilizaria na tentativa de fazer a filha ou revelar quem era o verdadeiro pai de sua filha ou fazê-la ir embora daquela casa. Dentre todas, preferia juntar suas coisas e ir embora; não queria humilhar-se diante a uma pessoa tão fria quanto à mãe, que não acreditaria em nenhuma de suas palavras – as palavras do seu fiel protegido valiam muito mais do que qualquer outra coisa que a ruiva lhe dissesse, já que Demitri a desmentiria.
— Pronta para apanhar ou juntar suas coisas? — disse, com a voz imperando ironia.
— Mamãe…
— Eu não tenho filha. No momento em que esta engravidou estando menor de idade, planejando ser mãe solteira, esta não é minha filha.
A espinha de Valia arrepiou-se, mas, tendo a finalidade de não demonstrar-se inferior àquela mulher, abriu o closet, pegou suas malas de viagem, encheu-as com seus pertences e os de sua filha, que a pouco nasceria, foi até o criado-mudo e digitou o telefone da operadora de táxi mais próxima. Não sabia para aonde iria, mas pelo menos, por alguns dias, ela tinha o poder suficiente de bancar um hotel para si. Quando se virou para seguir em direção à porta e ir ao térreo, foi pega de surpresa.
Sophia desferiu no rosto da garota um tabefe que fez a garota cair deitada sobre a cama, quase de bruços. A garota apenas gemeu de dor, mas não levou a mão à face, pois sabia que o que estava por lhe vir era, simplesmente, muito pior que apenas uma vermelhidão na face. O corpo da garota foi se enchendo de hematomas que surgiriam do contato de saltos baixos, extensões elétricas e até mesmo uma raquete em contato a pele da garota. Ela não protestou, no entanto.
— Isso é para você ver o quanto eu te odeio, Valia, desde pequena, desde o momento que você saiu do meu ventre. Eu, desde sempre, quis mata-la, mas Aleksander não está mais aqui, o que me possibilitaria fazê-lo. No entanto, possibilito-a que viva, bem longe de mim, de preferência. Não pise novamente nessa casa.
— Farei isso com muito prazer, mamãe. Eu também não quero ver, nunca mais, a sua face na minha frente. Um dia você ainda vai precisar de mim — disse chorosa, mas segurou as lágrimas. — E quando esse dia chegar, não conte comigo. As coisas funcionam dessa forma… Adeus, mamãe.
Partiu carregando quatro malas de viagem com suas coisas mais preciosas, a roupa do corpo, naquele momento abarrotada pela violência sofrida e algum dinheiro na bolsa cotidiana de couro falso. Sentia os hematomas lhe surgirem aos poucos, mas a dor física não era pior que a dor psicológica.
Fora naquele momento que se decidira que ganharia forças o suficiente para erguer-se na vida e demonstrar-se muito superior àquela mulher que a gerara. Teria seu próprio dinheiro, faria sua faculdade, cuidaria de sua filha… tudo, sem a ajuda, por mínima que fosse, de alguma coisa que estivesse ligado aos Nikolaevich. E, não por menos, se vingaria de tudo aquilo. Sophia e Demitri iriam pagar por cada segundo de dor que chegou, uma vez que fosse, a lhe proporcionar.
Sentiu o toque gelado na pele de seu braço, o que a fez acordar para a realidade. Nem tudo eram sonhos e, assim sendo, ela tinha que levantar-se do seu para continuar tocando sua vida, ainda mais tendo ela feito um acordo milionário.
No entanto, não sabia onde estava. O lugar, com a aparência de morto, não era nada atrativo e, pelo cheiro, parecia um hospital; tanto parecia, que o era. As paredes com seus tons pastel e gelo eram tristes, a intravenosa gotejante pinicava seu braço e ela tinha sono e dor de cabeça. Não fazia (nem queria) ter ideia de quanto tempo estava parada naquele lugar, simplesmente, mas havia Elisa, a sua bebê, que a esperava na companhia de uma babá que há muito cuidava de sua filha quando era mandada a missões como aquela e, provavelmente, de Vladmir também; eles eram bastante confiáveis nesses quesitos.
Reconheceu de primeira a face da pessoa que a tocava. O bondade estava presente em todas as partes do corpo dele, inclusive na hora que este puxou a agulha reciclável de silicone hospitalar presa dentro de uma das veias dela. Estava trajado muito diferente do modo em que o vira naquele coquetel: profissionalmente vestido, aquele homem chamava bastante a atenção, mas não tanto quanto da primeira vez que o vira.
— Enfim, a Bela Adormecida acordou — ele disse, cheio de humor.
Resolveu fingir de assustada e desmemoriada, já que aquilo funcionava bastante com pessoas “fracas” como ele:
— Quem é o senhor? E onde estou?
— Não sabe quem eu sou? — ele riu, desconcertado. — Sou Yves Pigasse, um dos médicos e empresários mais conceituados da Europa, e sim, isso é um hospital, o hospital da minha família. É estranho que jamais tenha ouvido falar de mim — ele abriu levemente os olhos dela para examinar, lançando um jogo de luz nos olhos dela. — Sente-se tonta? Enjoada, talvez?
— Um pouco, doutor.
Ele sorriu.
— Chame-me de Yves, apenas: dispenso qualquer pronome de tratamento. E você, minha cara paciente, eu não sei nada sobre você.
— Sou Elizabeth Laurent, tenho vinte e quatro anos e sou formada em Eventos, mas faço apenas bicos por enquanto.
Disse exatamente tudo o que Vladmir havia-lhe dito sobre a garota que assumiria o papel; e após tanto ensaiar, achava-se não apenas uma encenação, mas a verdadeira garota ruiva.
— Você não é daqui, é? — ele perguntou, talvez porque tivesse notado algum sinal de sotaque carregado, por conta do francês não colocado, por anos, em prática.
— Sim, mas vivi por muitos anos longe daqui, por meu pai ser diplomata e ainda viajar pelo mundo. Então, sendo eu a filha rebelde, resolvi parar em um canto e cá estou eu novamente, vivendo por conta própria.
— Isso é bastante excêntrico, creio eu.
— O quê? Não ficar viajando o mundo com meus pais?
— Não, você, com essa sua cara de nerd ser a filha rebelde — ele tinha um sorriso nos lábios, grande. — Você não vai conseguir ir embora sozinha, Elizabeth. Posso leva-la até sua casa.
— Oh, não, do… — ela parou, sentindo um comichão por tentar ser tão falsa. — Yves, eu posso me virar sozinha, eu juro.
— Não, eu insisto. Meu turno acabou e eu não tenho nada o que fazer agora, no inicio da tarde, então…
Aquilo fê-la perder o foco por alguns segundos, perguntando-se por quanto tempo ela esteve ali. Elisa era a sua prioridade, então tinha que ter ao menos uma noção de quanto tempo ficou ali, naquele hospital.
— Perdão… — ele recomeçou. — Tive que mantê-la com sedativos por algumas horas para exames apenas. Fui rápido em não deixa-la tocar a cabeça no chão e… Sinto lhe informar, mas você tem problemas de pressão baixa e diabetes; seu colesterol também não anda o dos melhores, Elizabeth. Você precisa cuidar mais da sua alimentação. No mais, é apenas isso, mas preferi deixa-la em observação.
— Santo Deus — ela balançou a cabeça negativamente. — Obrigada, Yves mais uma vez.
— Não há de que, senhorita Laurent.
Cavalheirismo era uma coisa que Valia adorava, admirava imensamente. Ficar ao lado daquele otário estava começando a ficar agradável, sem dúvidas.
— Yves, me chame de Liz, tudo bem? Se a gente se ver de novo será bem mais fácil.
— Liz. Eu posso tentar. E isso foi um convite ou algo assim?
— Pode ser. Só basta você aceitar. O resto é só deixar comigo.
— Vou pensar no seu caso, menina.
Ela sorriu em resposta: um rápido, mas, ainda assim, um caloroso sorriso. Costumava sorrir desse jeito apenas àquelas pessoas que estava disposta a atrair pelo dinheiro que receberia pouco depois, ainda mais depois dos anos de prática trabalhando com quilo; além do mais, jamais se atraia por sua caça, nunca deixava seu sentimental envolver-se com uma brincadeira que lhe era capaz de render muito dinheiro e este era muito bom. Contudo, parecia que, diferentemente das outras vezes, o seu sorriso havia sido espontâneo e ele, de todos com quem se relacionara, fora o único capaz de fazê-la sentir daquele jeito, era verdade.
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Valia estava se segurando para não falar que aquele homem era uma lesma dirigindo, mas ela tinha que entrar no personagem. Ao que Vladmir dissera-a, a garota era muito sonsa e gostava de levar a vida de uma forma regrada ao extremo, mesmo inserida no ramo ilegal, também. Infelizmente (ou felizmente), Valia não era daquele modo: desde o momento em que tomara Vladmir como aliado, ela já havia se aventurado em ser ladra de joias, obras de artes e antiguidades – poucas vezes, adicionava-se a lista o fato de ela também roubar carros –, bem como ser executora e também aliciadora; as coisas, claro, não aconteciam exatamente nessa ordem. Às vezes, o instinto de Carmen San Diegotomava-lhe o corpo, mas parecia ter mais sorte que esta, já que fazia as coisas pelas entrelinhas, e havia se contentado em fazer aquelas coisas por muito tempo, sem roubar dinheiro em espécie, mas sim recebê-lo por fazer trabalhos, e receber aquela proposta de enganar um otário apenas para ter US$ 100 milhões era-lhe incrivelmente tentador.
O GPS indicava o local que ela estava ocupando com Vladmir e Elisa. E o homem logo parou a frente da residência: um lugar modesto, mas claramente o prédio mais conservado de toda aquela parte do Centro Velho Parisiense. Não o convidou para subir, inventando a história de que compartilhava o apartamento com uma amiga bagunceira e que por isso não era uma boa ideia convidá-lo para entrar na casa dela. Com isso, Yves deu um sorriso em resposta e disse:
— Venho te buscar ás oito, então?
— Pode ser. Venha casual. Não iremos a nenhum baile de gala ou algo do tipo. Iremos apenas andar.
— Devo me preocupar com isso? — ele riu. — Cuide-se: não gostaria de ouvir que minha paciente teve outra queda de pressão.
— Tudo bem, doutor.
Acenou rapidamente para aquele homem após sair do carro e entrou no prédio, revirando os olhos, tentando recompor-se para aderir a sua principal faceta e ser quem ela era de fato.
Subiu com rapidez (e ainda se sentindo um pouco tonta) os cinco lances de escada e abriu a porta do apartamento sem fazer cerimônia, onde encontrou a pequena Elisa sentada a mesa de café com um caderno em mãos e a babá lhe ensinando alguma lição. Deu um beijo nos cabelos da filha antes de voltar-se a Vladmir, que ainda observava a paisagem parisiense da janela com um cigarro na boca e tendo em mãos uma garrafa de vodca que parecia recém-aberta.
— Já bebendo? — ela perguntou, retirando das mãos dele a garrafa e dando um longo gole, ainda no gargalo.
— Três horas, Valia! Qual é o problema de eu beber uma coisinha? Você também o faz. E por que chegou tão tarde?
— Socialmente, o que não é nada demais, na verdade. E sobre eu chegar tarde, qual é o problema? Não era para fazer o plano funcionar? Pois bem, Yves caiu na história toda e o próximo passo está perto de acontecer: sairei com ele as oito — ela sorriu-o, informando. — E sabe o que eu descobri? Que tenho diabetes, pressão baixa e alto colesterol, não é demais?
Ele retirou a garrafa das mãos dela.
— Então para de beber.
Rapidamente ela mudou o rumo daquela conversa, ao voltar-se a paisagem da Torre Eiffel, belíssima como sempre:
— Aquela garota, a tal Elizabeth…
— Preocupada com ela? — o homem tinha humor na voz. — Valia, Valia… Eu só estou mantendo-a dormindo por um tempo, mas quando acorda, ela parece bastante rebelde. Quem sabe, se ela se aquietar, eu dou um jeito de fazê-la viver bem longe de Paris?
— E se não?
— Se não, eu a executo e jogo o corpo dela no mar. E parece que ela prefere a esta opção que a primeira… você sabe que eu não tenho paciência… ainda mais quando estas pessoas fazem por merecer… A garota não é tão santa assim: ela repassava drogas nas festas em que trabalhava, sabe, e comprava de quem?…
— De você, óbvio.
— É isso ai.
— Você é tão mal — ela disse como se aquilo fosse, costumeiramente, um elogio.
— E você gosta disso — ele disse, com o humor elevado —, não é, querida?
Valia deu de ombros, como moderadamente fazia, e resolveu permanecer um pouco com a filha antes de ir recolher-se por algumas horas para, depois, ajeitar-se para encontrar Yves. E precisava escolher a dedo um visual que fosse chamar a atenção do homem e pelo que pode perceber, ele prezava pelo simples: odiava os deslumbramentos com os quais era obrigado a conviver quase diariamente. E Valia não o decepcionaria: quando resolvia encarar um personagem, era para fazê-lo caindo de cabeça em toda aquela história. O personagem se tornava parte dela, como se ela, de fato, fosse uma pessoa que interpretava: ou seja, ela era muito boa no que fazia.